quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

O público e o privado no Planeta “Big Brother"

DO PAN-ÓPTICO PARA O SINÓPTICO [1]

Esse texto foi produzido em 2003. Publicado nesse ano no Jornal Adunisinos. São Leopoldo. Rio Grande do Sul. Foi publicado dez anos depois do texto anterior desse blog: “Brasil: Aquém do Público além do privado”.

Gilson Lima*

Doutor em Sociologia das Ciências. Professor e Pesquisador NITAS/ORTOBRAS/CNPQ. COORDENADOR REGIONAL do Research Committee of the Clinical Sociology Association International Sociological (ISA). 


" Mudamo-nos agora, sugere Mathiesen, de uma sociedade dos estilo Pan-óptico para uma sociedade do estilo sinóptico: as mesas foram viradas e agora são muitos que observam poucos. Os espetáculos tomam o lugar da supervisão sem perder o poder disciplinador do antecessor. A obediência aos padrões ( uma maleável e estranhamente ajustável obediência a padrões eminentemente flexíveis, acrescento) tende a ser alcançada hoje em dia pela tentação e pela sedução e não mais pela coerção -  e aparece sob o disfarce do livre-arbítrio, em vez de revelar-se como força externa."[2]


            1989, poucas décadas, caia o Muro de Berlim e com ele desmoronava em pedaços nossas certezas que demarcavam posições tão claramente definidas de um lado e de outro. No início, ainda meio tontos, vimos uma turma em dianteira intitulando-se de vitoriosos da velha guerra realizada pela imposição de dois grandes mundos.

Para muitos, até mesmo ainda hoje, esses vitoriosos pareciam mesmo vitoriosos, com suas “novas” idéias liberais, ou seja, a velha crença na universalização absoluta do mercado, agora aliada com a invencível superioridade da pressão tecnológica aceleradora também da velha certeza de um progresso num futuro que agora está cada vez mais presente. Para outros, uma derrota temporária de uma esquerda que insiste em refazer os caminhos do final do século XIX.

A novidade deste novo futuro presente, no entanto, é que este futuro não tem mais uma responsabilidade coletiva a ser impressa pelos ditos melhores e mais equipados membros da nova elite planetária, não se julga e não pretende ser mais  responsável pela orquestração comum dos destinos dos fracos, que são cada vez mais fracos e porém, cada vez mais, muitos.

Enfim, até mesmo, alguns chegaram a alardear que a história tinha acabado. Novos liberais se intitulam consultores do novo destino do mundo sem fronteiras para o hiper consumo e magicamente indicam suas velhas receitas para alcançarmos o paraíso das nossas mais inúteis vontades desejantes.

            O Brasil, a sua moda, assimilava os ventos das “novas” idéias que aqui chegando, eram como que de sempre, adaptadas em discursos num velho cardápio das nossas habilidosas elites, sempre muito astutas em mesclar idéias “modernas”, “novidades”, com conhecidas práticas da tradição. Nesta época escrevi um artigo ironizando o debate da privatização da esfera pública brasileira que então recém iniciava-se[3]. Nesse artigo, tentei demonstrar que na literatura social e política brasileira existiram várias possibilidades de entendimento e compreensão sobre o público e o privado e que, no Brasil, nunca efetivamente vivemos e construímos uma esfera pública. Para isso, demonstrei, com ironia elementos e eventos da nossa velha história colonial, Imperial e Republicana. Queria demonstrar também, que no caso do nosso país, privatizar a esfera pública nunca foi novidade, talvez seria uma novidade o contrário, ou seja, se começássemos a querer construir pela primeira vez uma efetiva esfera pública para além, ou até mesmo contra ou quem sabe até autonomamente complementar, ao privado.

No entanto, por mais que imaginasse na época a sede de universalização do privado sobre o público, jamais seria possível pensar que alguns anos mais tarde emergiriam em nosso cotidiano um fenômeno social e econômico como o dos chamados reality shows, cujas expressões brasileiras mais adequadas ficaram conhecidas pelos programas: Casa dos Artistas do SBT e o Big Brother da Rede Globo. 

Esse fenômeno vem associado a um conjunto de mudanças, que talvez possam ser entendidas se atentarmos a ver, com mais cuidado, as mutações que vêm compondo o que Manuel Castells denomina "sociedade em rede". Um público, transformado em audiência de acesso informacional caminha, como crianças que se divertem com seus novos brinquedinhos, para uma sociedade onde até mesmo a intimidade está publicamente em rede. Uma sociedade onde as dobras subjetivas dos seus agentes estão cada vez mais conectadas e vigiadas, até mesmo em seus momentos mais íntimos.


A esfera pública está se liquidificando. O público plastificado virou audiência e o velho privado transmutou-se para a exposição pública da intimidade.

Na formatação do realitys shows, o “público” experimenta a sensação de tocar o distante e desconhecido, de torná-lo familiar, domesticá-lo e, principalmente, atuar sobre ele. Porém, as máquinas sensórias e cognitivas modulam a subjetividade, buscam provocar nossas vontades desejantes, ampliar nossas ressonâncias sensíveis, para uma manipulação abstrata de uma intimidade privada onde quase todos participam.

A experiência começou como experimentos exibicionistas isolados em Webcams. Já há alguns anos, homens e mulheres disponibilizavam endereços na web para quem os quisessem ver no cotidiano, fazendo coisas simples e bem íntimas como higiene, trocar de roupas até mesmo vendo-os(as) defecando no que antigamente apelidávamos de “privadas” e dando descargas dejetos consumidos. Em alguns casos mais exagerados, era permitido até mesmo assisti-los em pleno exercício de suas relações sexuais mais íntimas. A novidade foi se esgotando. No início, um brinquedo novo é quase tudo para uma criança. Depois sua relação com as coisas do mundo geralmente amadurece. As possibilidades abertas pela Internet migraram para o mundo midiático mais tradicional e logo, chegou em Hollywood, onde o filme que ficou mais conhecido por badalar este fenômeno foi Truman Show.

O mais interessante é que a atual formatação televisiva dos "reality shows”, onde o privado inclui o público, não se trata de uma invenção tupiniquim, ou seja, não é originalmente uma invenção de uma cultura integrada a uma “primitiva e baixa mordernidade que foi tropicalizada pela sensualidade de peles escurecidas pela excessiva exposição da energia solar”. Não!

É uma invenção da Alta Modernidade. Com notório sucesso em países inclusive nórdicos. O programa "Big Brother" foi inventado num conhecido país que se encontra nas províncias dos Países Baixos, a Holanda. A Holanda depois de ser o berço de grandes pintores como Bosch, Rembrandt e Van Gogh , e que atrai visitantes de todo o mundo, agora nos presenteia com  John de Mol, 44 anos, um ex-jogador de futebol que, graças à produção de programas populares de TV que exploram sexo e situações insólitas, se tornou o 32º homem mais rico do seu país. 

De Mol com sua pequena produtora Endemol, cresceu com o sucesso relâmpago após sua invenção ilustrativa. A primeira versão do "reality show" estreou em setembro de 1999 naquele país.

Quando foi exibido na Holanda, o primeiro "Big Brother" ele dava cerca de 30 pontos de audiência. Seu vencedor, Bart, ficou famoso e passou a estrelar comerciais de TV após o fim da maratona, além de ter arrumado uma namorada entre as concorrentes. O romance ajudou a alimentar a popularidade do programa. De Mol logo vendeu a fórmula de "Big Brother" para a rede americana CBS e para vários países europeus. A Telefônica, grupo espanhol que atua na telefonia brasileira, ofereceu, já no ano passado, mais precisamente março de 2000, R$ 11 bilhões pela empresa de Mol.

O formato foi logo exportado para a Inglaterra, Alemanha, Espanha e Estados Unidos. O número de países cresceu para os atuais 17, que incluem também os latinos. Podemos encontrar esse formato televisivo na Noruega, Dinamarca, Suécia e Bélgica, o programa existe também em países além do Brasil, na Argentina, no México, na Austrália e na África do Sul.

Além disso, surgiram variantes, cuja reverência de variação se situa nos limites da permissividade da intimidade. A variante sueca conhecida como "A Ilha de Robinson", ambientado em uma ilha deserta, transformou-se em tragédia: um dos concorrentes se suicidou. Em Portugal, o "Big Brother" que já está na terceira edição, causou escândalo transmitindo um casal transando ao vivo, desencadeando debate sobre a “adequada” conduta na TV. Por fim, tudo foi dramatizado tendo como pano de fundo uma transgressão que foi punida com a "eliminação" do jogo dos “exagerados”. O drama continuou depois na “vida real” quando os dois participantes punidos se redimiram sacramentando rapidamente a união em casamento oficial, tudo devidamente televisado. A versão inglesa é mais contida. Porém, isso não impediu um dos personagens do "Big Brother” ameaçar ao vivo um concorrente no ar, com uma faca no pescoço.

Na Alemanha a produção quase não foi ao ar devido aos ataques de líderes políticos e religiosos que acusaram o programa de violar a "dignidade humana".  O "Big Brother" alemão só foi permitido com o compromisso de que as câmeras fossem desligadas diariamente durante uma hora.

Mas o sucesso de público não necessariamente se deve à exibição de cenas consideradas aberrantes, mas no apelo da audiência a compartilhar – até mesmo com a família unida no sofá, momentos de sensações extasiantes de prazer paradisíacos de um voyeurismo alucinante.

Enfim, da velha discussão sobre o público e o privado podemos nos perguntar o que sobrou pelo menos de nossas dobras mais subjetivas. Hoje há quem afirme que a busca pela expressão e explicação representada pelo conhecimento complexo da realidade é algo do passado. Dizem outros, que mesmos os conhecidos almanaques e folhetins novelescos que caricaturavam uma aproximação com a realidade estão sendo descartados por não permitirem gerar ondas “aceitáveis” de audiência no mercado simbólico.

Os "reality shows" emergem como agentes sobre noções de público e privado, cidadão e indivíduo, em um contexto de declínio dos movimentos sociais que marcaram a cena francesa nas décadas de 60 e 70, do desmoronamento da sociedade disciplinar industrial e da ascensão de uma civilização que desconcentra seu foco da matéria e se volta a imaterialidade subjetiva da imagem, ao alargamento do córtex racional, modulado cada vez mais por máquinas de pasteurização simbólicas e cognitivas (computacionais) que aparentemente nos dotam de um hiper córtex rizomaticamente conectado. 

Ao que parece a nova pasteurização da subjetividade contemporânea exige novos formatos cada vez mais presentes e aceitos pela audiência simbólica. Eles se realizam mediados agora muito mais pelo improviso e alheios a roteiros pré–determinados. Já nos lembrava Ítalo Calvino com suas propostas referências para o próximo milênio onde incluía a velocidade (das imagens ziguezaguiantes e desformes dos videoclipes substituindo a lenta representação panorâmica da realidade), a rapidez (sensacionalismos de vida curta, de um curto agora), a multiplicidade, a precisão da economia simbólica dos fluxos rizomáticos. Tudo isso compõe um cardápio da falência dos mergulhos de sentido realizado pelas hermenêuticas de profundidade.

Em uma coisa podemos ainda ficar tranquilos, felizmente, não conseguimos detectar os segredos da energia vital que movem nossos pensamentos, não podemos ainda capturar para uma MATRIX transparente, os nossos pensamentos, muito menos, nossas angústias, nossos temores e nossos sonhos.

Por fim, seria necessário hoje reescrever o artigo que acima citei, ao qual daria, no entanto, um novo título: Brasil: Aquém do privado para além da intimidade. Talvez começaria me perguntando: onde foi o público? Poderia responder: Virou audiência simbólica de uma privacidade pública. Como me referi no início desse artigo, acredito cada vez mais nitidamente que após a fulminante queda do muro de Berlim, a Guerra Fria não nos logrou nenhum vencedor, não tivemos, frente aos dois grandes mundos que caíram despedaçados, nenhum vencedor, na verdade, todos perdemos e continuamos perdidos.




[1] Esse texto foi produzido em 2003. Dez anos depois do texto anterior: “Brasil: Aquém do Público além do privado”. Para quem tiver curiosidade de ver na íntegra este artigo, ele encontra-se no seguinte endereço da Internet: (http://glolima.blogspot.com/2012/01/brasil-aquem-do-publico-alem-do-privado.html)
* Doutor em sociologia contemporânea e mestre em ciência política pela UFRGS. Professor e Pesquisador  CNPQ. Pesquisador do Research Committee Logic & Methodology and at the Research Committee of the Clinical Sociology Association International Sociological (ISA).
[2] BAUMANN, Ztygmunt.  Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001: 101.
[3] Este artigo intitulava-se: “Brasil: Aquém do Público além do privado”.

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